QUEM FOI DONA FRANSQUINHA?

Francisca Almeida Cruz, ou Dona “Fransquinha’’ como era conhecida por todos, nasceu em quatro de novembro de mil novecentos e vinte e sete em Vertentes - Itapagé, interior do Ceará. Em meados dos anos 80 mudou-se para cidade de Apuiarés também no interior do Estado, onde passou boa parte de sua vida com seu marido e filhos. Trabalhava na roça junto com seu companheiro, Joaquim. Sempre muito independente, ela fazia o mesmo serviço braçal que ele e também negociava as vendas para o sustento da família. Teve sete filhos, dentre eles um morreu ainda jovem, devido às condições precárias do sertão naquela época.
Na cidade, morou em várias casas até finalmente encontrar uma espaçosa o suficiente para a família que não parava de crescer e onde ela ficou anos de sua velhice. Sempre recebia todos com atenção. Seu dia era longo e cansativo, com uma pequena pausa para assistir as novelas da tarde e logo de volta para cozinha. Café da manhã, almoço, lanche da tarde e janta eram garantidos na sua casa, que apesar de simples, tapioca e café não costumavam faltar. Carinhosa, sentia falta dos filhos que moravam longe e estava sempre cobrando por suas visitas, dona Francisca era uma mulher com um coração enorme.

O PESO DOS 80
Com a idade pesando, ficou difícil para ela ser independente. O costume dos parentes de ver ela fazendo tudo se tornou um sinal positivo e saudável, mas de perto não era nada disso. Diversas vezes ela adoeceu e melhorou por conta própria. Já não sabia administrar seu dinheiro e a memória começou a falhar, eram os primeiros sinais de que ela precisava de auxílio. O tempo continuava passando e a cada ano ela ficava mais dependente e sozinha. Em 2015 mudou-se da casa que morou por muitos anos e se distanciou do bairro que lhe era mais familiar, desde a mercearia onde ela sempre estava, ao seus vizinhos de tempos. O motivo da mudança foi para deixá-la mais próxima de alguns familiares que poderiam lhe dar a atenção e a ajuda que fossem necessárias e apesar de ter alguém, ela continuava se mostrando forte o suficiente para fazer tudo que precisava sozinha, e logo, sozinha estava.
Morou por três anos nessa casa, nossas visitas ficaram cada vez mais imploradas, ela queria atenção. Foi preocupante que ainda nessas pequenas viagens que fazíamos com a família, poder perceber que minha avó estava no mínimo confusa. Trocava nomes e confundia horários, esquecia abruptamente o que ela estava fazendo, onde estava, com quem estava, que dia era. Para nós, aquilo foi emergente. Então, em nossa última tentativa de zelar pela sua velhice, ela veio morar conosco na capital em 7 de julho de 2017, onde infelizmente só passou um ano.

NOVA CASA
Conviver com um idoso não é fácil, pontos para dona Alice, minha mãe, que ficou com ela esse último ano. Conviver com idoso em um estado de demência pela idade é ainda mais difícil.
No primeiro dia em nossa casa, vovó teve uma memória afiada, lembrava de todos os nomes, sabia quem eu era e conversava com a gente. Na mesma semana ela já não me conhecia mais, às vezes não sabia onde estava ou simplesmente achava que estava na sua casa em Apuiarés. Tentou “fugir” algumas vezes, escapava dizendo que ia voltar para casa ou dizendo que ia visitar algum de seus vizinhos da época. Devido a tudo isso e com a vida agitada de todos da casa, mamãe pediu demissão da empresa que ela amava e trabalhava a treze anos para cuidar dela com mais atenção, um sacrifício feito por amor, e desse veio muitos outros, era o começo da jornada.
ROTINA HOSPITALAR

Começamos a rotina pelos exames que os médicos passavam, eletrocardiograma, exames de sangue e urina, etc. Todos eram pagos em clínicas particulares já que a demora do SUS pode levar meses. Pagamos exames, táxis, remédios e o que mais precisasse para ela ter o máximo de conforto possível. Não demorou muito para percebermos que ela precisava de ajuda no banho, ao se vestir, pentear, comer, e logo passou a usar fraldas também. É estranho pensar que regredimos um pouco quando vamos envelhecendo, não é fácil para quem acompanha e imagino que não deve ser fácil para quem vive, afinal de contas ela nunca gostou de ser dependente. Vovó era a nossa criança.
​
A primeira emergência já foi muito preocupante, ela caiu por cima do braço após ter despencado do banco e imediatamente levamos ela para o hospital. Primeiramente para o Hospital Distrital Edmilson Barros de Oliveira, conhecido como Frotinha de Messejana, onde ela esperou mais ou menos uma hora sem atendimento. Por conta da demora para ser atendida, a levamos para a UPA (Unidade de Pronto Atendimento) o que ocasionou em ainda mais espera. Foram quase três horas esperando para atendimento de emergência de uma idosa com noventa anos que deveria ter prioridade. Após ser atendida, ela foi diagnosticada com fratura no braço e encaminhada para o Instituto Dr. José Frota, conhecido como Frotão (não foi oferecido nenhuma ambulância para o encaminhamento). Chegando no hospital, soubemos que ela não podia engessar o braço por conta da idade, então foi colocado uma tipoia e ela seria revisada alguns dias depois, onde iríamos descobrir que seu estado de saúde era ainda mais grave do que pensávamos.
​
​
​
​
​
​
​
Após a queda, vovó começou a ter sintomas mais intensos, sempre ficava de cabeça baixa e calada. Parou de tentar se levantar sozinha e desaprendeu a andar sem ter uma mão segurando. No dia da revisão da fratura no braço, dia 01 de março de 2018, o médico encaminhou ela para o clínico de imediato, o braço fraturado era o de menos, ela estava com problemas de respiração. Descobrimos que ela não tinha um dos rins, graças a competência do hospital que se importou em fazer um exame à parte do problema que ela tinha ido resolver. Nesse período de Frotão sentimos a pressão maior do sistema público de saúde, sem imaginar que o que viria pela frente seria um desafio ainda maior.


Vovó conseguiu tratar seu problema no rim sem cirurgia. Passou por vários dias de hemodiálise e ficava dormindo o tempo todo. Minha mãe chorava, porque hemodiálise é um processo doloroso, e eu chorava porque foi um problema inesperado. Em uma visita, lembro de ter me desfeito em lágrimas desesperadas, eu não estava pronta. Estaria ela sofrendo demais? Era o que nos desesperava e nos tirava o sono. Todas as nossas rotinas ocupadas logo tiveram mais uma função, ficar de plantão para que minha mãe descansasse, e assim fizemos. Meus irmãos, eu, papai, primos, tios, todos ficaram vez ou outra dando o apoio que precisasse. Auxílio médico ela teve bastante, apesar da lotação do hospital. Em uma outra visita eu já pude vê-la acordada, já falava um pouquinho, já ria, e apertava minhas mãos. Era o conforto que eu esperava, e queria. Não demorou muito para seu desempenho melhorar, a hemodiálise foi suspensa, seu braço recuperado, ela já andava e levantada com nossa ajuda, vovó estava salva. Graças a uma equipe de médicos, enfermeiros e maqueiros que estavam a disposição de tirá-la dali para o conforto de casa. Ela passou quinze dias nesse hospital, entrando dia 03 de março e saindo dia 15, de volta para gente.
De volta ao lar
Seu retorno foi diferente, de novo ela tinha mudado de cenário e aquilo parecia demais para sua cabeça, de novo percebemos o quanto o medo era presente na vida dela e como isso tudo tinha mexido com suas emoções e reações. O cuidado era redobrado, mamãe já não sabia o que era sair sem dona Fransquinha, e dona Fransquinha não era muito fã de sair “sem necessidade”, logo nos acostumamos a tê-la sempre no sofá, reclamando dos meus gatos e tirando um cochilo, já que sua novela da tarde aparentemente não a interessava mais. Pouco tempo depois, mais doenças apareceram, sua respiração estava cada vez mais complicada, ficou difícil administrar em casa apenas com um aerossol e remédios. Em um dia de quarta-feira, ela estava com febre alta, a levamos de volta para o Hospital (UPA) e quando foi feito o raio x, foi diagnosticado inflamação nos pulmões. Mais uma vez eles não podiam ficar com ela, não havia leitos, foi passada uma medicação para controlar e caso ela piorasse, teria que voltar.